Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem (TDL): o que vocĂȘ precisa saber.
- Revista Crescer
- 11 de set. de 2024
- 7 min de leitura
Fonte: Revista Crescer / Vanessa Lima

Cada criança tem o seu tempo para atingir os principais marcos
do desenvolvimento?
Sim e não. Essa frase, bastante usada para acalmar pais e mães preocupados com a velocidade com a qual os filhos adquirem certas habilidades esperadas, é vålida em alguns casos, mas também pode ajudar a normalizar sintomas que requerem identificação e intervenção. O desenvolvimento da fala é um deles.
Seu filho nĂŁo precisa sair falando antes do bebĂȘ da vizinha e um pequeno atraso pode mesmo nĂŁo significar nada. PorĂ©m, existem sinais de alerta que nĂŁo devem ser ignorados, jĂĄ que podem indicar a existĂȘncia de condiçÔes como o Transtorno do
Desenvolvimento da Linguagem (TDL). VocĂȘ jĂĄ ouviu falar?
âO Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem (TDL) Ă© uma condição que afeta a capacidade da criança de compreender e/ou expressar linguagem de forma adequada para sua idade.
Pode ser definido como um atraso persistente no desenvolvimento da linguagem, nĂŁo atribuĂvel a uma causa conhecida, como deficiĂȘncia intelectual, deficiĂȘncia sensorial ou distĂșrbios neurolĂłgicosâ, explica a fonoaudiĂłloga Liziane Chrystine Diogo de Souza Marques, do Hospital Santa Paula (SP).
Embora haja relatos de crianças com esse quadro â compreendido como uma dificuldade na aquisição da linguagem, na ausĂȘncia de outras doenças â desde o sĂ©culo 19 (nĂŁo que antes disso os casos nĂŁo existissem, mas nĂŁo hĂĄ registros conhecidos), o nome Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem ou TDL foi cunhado muito recentemente, sĂł na Ășltima dĂ©cada.
Antes, de acordo com a fonoaudiĂłloga Cibele Fontoura Cagliari, do Hospital Infantil Pequeno PrĂncipe (PR), diferentes terminologias eram utilizadas, como âatraso na linguagemâ, âafasia congĂȘnitaâ ou âdistĂșrbio de linguagemâ, mas a aplicação era inapropriada.
âNo Brasil, houve, por muito tempo, o uso do termo DistĂșrbio EspecĂfico de Linguagem (DEL), aplicado Ă s crianças que nĂŁo apresentavam deficiĂȘncias sensoriais, alteraçÔes neurolĂłgicas, deficiĂȘncia intelectual (DI), sĂndromes ou transtornos psiquiĂĄtricos que poderiam justificar suas dificuldades de linguagemâ, conta a especialista.
âEmbora conceitualmente satisfatĂłrio, mais de 20 anos de pesquisas na ĂĄrea evidenciaram alguns problemas com essa classificação. Crianças com desempenho cognitivo limĂtrofe, por exemplo, nĂŁo poderiam ser classificadas nem como DEL e nem como DIâ, pontua.
Foi sĂł em 2014, segundo ela, que o periĂłdico cientĂfico International Journal of Language & Communication Disorders desencadeou uma ampla discussĂŁo sobre a questĂŁo, o que acabou levando um grupo de pesquisadores ingleses a desenvolverem um estudo multidisciplinar, com o intuito de chegar a um consenso.
EntĂŁo, estabeleceu-se que, para o diagnĂłstico de TDL, Ă© preciso entender se as dificuldades de linguagem apresentadas pela criança sĂŁo persistentes e significativas. Depois, se a existĂȘncia das dificuldades persistentes forem confirmadas, o segundo passo Ă© identificar a presença ou nĂŁo de outros quadros associados.
âA partir daĂ, houve a recomendação do uso do termo diagnĂłstico Transtorno do Desenvolvimento de Linguagem (TDL)â, explica. Mas isso apenas se nĂŁo forem constatados outros quadros associados, como autismo, TDAH, deficiĂȘncia intelectual ou deficiĂȘncia auditiva.
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Um diagnĂłstico desafiador
Embora os sinais apareçam cedo, não é simples fazer um diagnóstico preciso logo de cara, quando a criança é pequena, conforme explicam as fonoaudiólogas Juliana Gùndara e Marina Puglisi, representantes da TDL Brasil, uma iniciativa que surgiu da necessidade de conscientização sobre o transtorno e de capacitação de profissionais para a identificação, diagnóstico e intervenção em TDL.
âIsso porque outras condiçÔes podem apresentar os mesmos sinais, dificultando o diagnĂłstico diferencial. Crianças com transtornos motores de fala, transtorno do espectro autista, deficiĂȘncia auditiva ou intelectual, entre outras, tambĂ©m apresentam atraso no desenvolvimento da linguagemâ, afirma Juliana.
Como um dos critérios do TDL é que as alteraçÔes de linguagem sejam persistentes, dificilmente o diagnóstico é fechado antes dos 4 anos de idade, ainda que a busca por ajuda tenha acontecido cedo.
Soma-se a isso justamente a demora em identificar que hĂĄ uma questĂŁo no desenvolvimento, que requer investigação. âA criança com TDL Ă© inteligente e pode se desenvolver muito bem em outras habilidades, o que pode fazer com que suas dificuldades de linguagem passem despercebidasâ, aponta Marina, que Ă© professora adjunta do Departamento de Fonoaudiologia da Universidade Federal de SĂŁo Paulo (Unifesp).
Muitas vezes, o TDL pode ser confundido com o autismo. âIsso acontece devido Ă sobreposição de alguns sintomas, como dificuldades na comunicação e na interaçãoâ, afirma Liziane, fonoaudiĂłloga do Hospital Santa Paula. âNo entanto, trata-se de condiçÔes distintas e uma avaliação detalhada, feita por profissionais especializados, Ă© necessĂĄria para diferenciĂĄ-losâ, acrescenta.
Vale lembrar que o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e o Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem (TDL) não podem ser diagnosticados na mesma criança e isso também ajuda a causar certa confusão.
âNo TDL, a criança tem alteraçÔes persistentes de linguagem que nĂŁo podem ser explicadas por uma condição biomĂ©dica associada (como o TEA)â, lembra Juliana. Quando a criança Ă© pequena e tem essa dificuldade de falar ou de compreender palavras, como consequĂȘncia, pode ter comportamentos considerados inadequados.
Conforme ela cresce, pode ter dificuldades nas interaçÔes sociais. âEssas inadequaçÔes, porĂ©m, sĂŁo consequĂȘncias dos desafios que enfrenta por conta da falta de compreensĂŁo ou expressĂŁo da linguagem, por conta do TDLâ, diz a especialista do TDL Brasil.
JĂĄ as crianças que estĂŁo no TEA apresentam dificuldades persistentes na interação social, entra outras caracterĂsticas. âAs alteraçÔes no desenvolvimento dos aspectos formais da linguagem nĂŁo estĂŁo presentesâ, diz.
Apesar disso, algumas crianças no TEA podem, sim, tambĂ©m ter dificuldades persistentes relacionadas Ă linguagem. âNesse caso, o que existe Ă© um Transtorno de Linguagem (TL) associado ao TEA. A identificação, a caracterização das manifestaçÔes e o diagnĂłstico diferencial sĂŁo essenciais para que a intervenção seja especĂfica e igualmente diferenciadaâ, esclarece Juliana.
âA criança com TDL Ă© inteligente e pode se desenvolver muito bem em outras habilidades, o que pode fazer com que suas dificuldades de linguagem passem despercebidasâ
Marina Puglisi, fonoaudiĂłloga da TDL Brasil
De acordo com as especialistas do TDL Brasil, o transtorno afeta cerca de 7% da população. âIsso significa que, em uma sala de aproximadamente 30 alunos, dois tĂȘm TDLâ, afirma Juliana.
E os nĂșmeros podem atĂ© ser o dobro disso ou mais, se considerarmos os casos que nĂŁo chegam a ser diagnosticados. Ă muito provĂĄvel, pelas estatĂsticas, que vocĂȘ conheça alguĂ©m que tenha TDL, mesmo sem saber. O transtorno Ă© mais frequente em meninos do que em meninas, assim como acontece com quase todos os transtornos de fala e linguagem.
O TDL acomete 1 menina a cada 3 meninos. âAs causas ainda nĂŁo sĂŁo totalmente claras, mas hĂĄ muitos estudos demonstrando que diferenças nos nĂveis de hormĂŽnios sexuais (estrogĂȘnio e testosterona) durante o perĂodo embrionĂĄrio ou pĂłs-natal inicial podem estar associadas Ă anatomia e organização funcional das ĂĄreas cerebrais relacionadas Ă linguagem e ao prĂłprio desenvolvimento comunicativoâ, explica Juliana.
Quais sĂŁo as causas do TDL?
AtĂ© hoje, a ciĂȘncia nĂŁo determina uma Ășnica causa para o Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem, mas jĂĄ identificou alguns fatores de risco normalmente associados com os casos de suspeita.
âSabe-se, por exemplo, que o quadro pode ter relação com aspectos genĂ©ticos e do desenvolvimento intrauterinoâ, aponta a fonoaudiĂłloga Marina, da TDL Brasil. âPais com histĂłrico de alteraçÔes do neurodesenvolvimento tĂȘm mais chances de ter filhos com TDL (isso tambĂ©m ocorre com outros quadros neurodivergentes).
AlteraçÔes em partes muito pequenas de alguns genes podem aumentar a chance da criança ter TDL, mas a genĂ©tica sozinha nĂŁo determina a manifestação. IntercorrĂȘncias durante a gestação ou o parto, por exemplo, podem aumentar o risco de transtorno de linguagem, tais como a prematuridade, baixo peso ou baixa oxigenação ao nascimento", explica Marina.
Segundo a especialista, o ambiente tambĂ©m tem um papel importante na ativação desses genes, o que Ă© conhecido como "epigenĂ©tica". "Um ambiente desfavorĂĄvel para a experiĂȘncia comunicativa pode contribuir para a manifestação das alteraçÔes, da mesma forma que um ambiente favorĂĄvel, rico em estĂmulos adequados, pode servir como um fator de proteção: hĂĄbitos de leitura em famĂlia, a qualidade e o estilo do cuidado e da comunicação dos pais e cuidadores, a qualidade e as oportunidades de interaçÔes sociaisâŠ
Tudo isso pode aumentar ou reduzir o peso dos fatores de riscoâ, acrescenta.
Os sinais de alerta â quando buscar ajuda?
Agora que vocĂȘ jĂĄ sabe que o TDL afeta mais crianças do que se pensa e que os meninos sĂŁo os principais acometidos (mas nĂŁo os Ășnicos), Ă© importante entender que identificar e tratar a questĂŁo Ă© fundamental para oferecer as melhores chances de desenvolvimento ao seu filho.
O TDL pode impactar no aprendizado escolar, que depende do domĂnio da linguagem, tanto escrita como falada. AlĂ©m disso, afeta as habilidades de interação social e a capacaidade de fazer e manter amigos, jĂĄ que a confiança na comunicação diminui.
Uma criança com TDL tem mais riscos de apresentar dificuldades acadĂȘmicas, sociais e emocionais, nĂŁo apenas durante a infĂąncia, mas tambĂ©m na adolescĂȘncia e na vida adulta.
Por essa razĂŁo, Ă© fundamental que a famĂlia fique atenta aos sinais. âUma criança com suspeita de TDL demora para falar ou aprende algumas poucas palavras, apresentando dificuldade para expandir esse conhecimento, mesmo quando o ambiente Ă© adequado em termos de estĂmulosâ, completa.
Mas, afinal, quais sĂŁo os sinais que devem ser compreendidos como bandeiras vermelhas? A fonoaudiĂłloga Cibele, do Hospital Pequeno PrĂncipe, aponta alguns dos principais:
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AusĂȘncia ou pobreza de vocalizaçÔes aos 6 meses de idade;
1-NĂŁo mostrar interesse em se comunicar e evitar contato visual aos 6 meses;
2-Balbucio sem consoantes aos 9 meses;
3-NĂŁo dizer as primeiras palavras aos 15 meses;
4-AusĂȘncia de combinação de palavras aos 24 meses;
5-Quando os pais entendem menos de 50% do que a criança fala, aos 2 anos de idade;
6-Quando a criança não se comunica com frases completas aos 3 anos de idade;
7-Quando nĂŁo relembra eventos recentes apĂłs sua ocorrĂȘncia aos 3 a 4 anos de idade.
Como é o tratamento de crianças com TDL
NĂŁo existe uma âreceita de boloâ e o tratamento de crianças diagnosticadas com TDL varia de acordo com a criança, com a fase em que ela estĂĄ e com as necessidades que apresenta. SĂł um profissional capacitado serĂĄ capaz de elaborar um plano de intervenção adequado, depois de avaliar o pequeno.
Mas um ponto Ă© fato: a participação da famĂlia faz toda a diferença. âExistem evidĂȘncias robustas na literatura cientĂfica sobre a eficĂĄcia da intervenção fonoaudiolĂłgica e sobre a importĂąncia da participação ativa da famĂlia e dos educadores envolvidos com a criançaâ, diz Marina.
âA manifestação das dificuldades do TDL muda conforme a criança se desenvolve e, portanto, os objetivos tambĂ©m devem mudar com o tempo. As necessidades de uma criança de 3 anos provavelmente estarĂŁo relacionadas Ă aprendizagem de palavras, possivelmente Ă inteligibilidade da fala e ao uso de frases cada vez mais complexas; jĂĄ as de uma criança mais velha provavelmente estarĂŁo relacionadas Ă compreensĂŁo de conteĂșdos acadĂȘmicos cada vez mais formais e complexos e Ă elaboração de textos e narrativas com coesĂŁo e coerĂȘncia, tanto na linguagem oral quanto na escrita.
Dependendo da idade, das caracterĂsticas da criança e do impacto das alteraçÔes de linguagem na sua saĂșde mental e desempenho acadĂȘmico, pode tambĂ©m ser necessĂĄrio um trabalho conjunto com psicĂłlogos e psicopedagogosâ, afirma a especialista.
Mas, em geral, o tratamento envolve terapia de fala e linguagem, com terapia comportamental e programas educacionais especializados. âO envolvimento dos pais e cuidadores no processo de tratamento tambĂ©m Ă© fundamental para o sucesso a longo prazoâ, reforça Liziane.
Estar ao lado do seu filho nessa jornada, certamente, vai fazer toda a diferença!
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